LUIZ FLÁVIO GOMES é doutor em Direito penal pela Universidade Complutense de Madri e mestre em Direito Penal pela USP. Foi Promotor de Justiça (1980 a 1983), juiz de Direito (1983 a 1998) e advogado (1999 a 2001). É autor do Blog do Professor Luiz Flávio Gomes. Consultor Jurídico, 10/02/2011
Uma das hipóteses mais aventadas pelos críticos das Unidades de Polícia Pacificadora (UPPs) é a de que, mais do que diminuir as taxas de criminalidade e da violência, a instalação das Unidades de Polícia Pacificadora seria responsável pela fuga de traficantes e a migração do crime para outras áreas não contempladas por estas unidades, uma vez que a UPP não combate as causas sociais da criminalidade (as raízes) típicas das classes desfavorecidas, ou seja, não constitui um instrumento de prevenção primária, social, da criminalidade, mas um instrumento de prevenção situacional, que intervém pontualmente em um determinado espaço para impedir que nele o crime se manifeste.
Não se pode confundir, portanto, a prevenção primária (que significa cuidar das raízes do crime, buscar suas causas mais profundas e interferir nelas) com a prevenção situacional (que é localizada, territorialmente determinada).
Aspectos negativos da prevenção situacional
As Unidades de Polícia Pacificadora constituem situações de prevenção situacional que, normalmente, não evita o crime. Apenas o obstaculiza ou adia ou desloca sua prática (de um bairro para outro bairro, de uma cidade para outra cidade, de um Estado para outro ou de um país para outro).
Os efeitos da prevenção situacional, em princípio, não são tão positivos como se poderia supor, nem têm caráter geral (qualquer tipo de delito), nem, desde logo, a médio e longo prazo. Salvo em casos de uma demanda criminal rígida, o crime buscará outro espaço físico menos protegido, outro momento mais idôneo, outra vítima mais vulnerável, outra situação menos arriscada... para conseguir seus objetivos.
Referido deslocamento, ademais, terá com freqüência conotações sociais regressivas e discriminatórias, já que o infrator buscará as áreas e espaços cujos titulares não possam financiar o custo dos dispositivos de proteção, isto é, os de mais baixos níveis de renda; e, por sua vez, os poderes públicos polarizarão os esforços preventivos (entendidos em uma acepção meramente policial e restritiva) em torno dos grupos e subgrupos definidos ex ante como populações “conflituosas” (sempre minorias e baixos estratos sociais), ou os espaços físicos mais criminógenos (os subúrbios da cidade grande ou os seus bairros pior dotados).
Aspectos positivos da prevenção situacional e do deslocamento do crime
Há um setor da doutrina que mitiga os efeitos negativos do deslocamento do crime com a noção complementar da difusão de benefícios, isto é, invocando a influência positiva que a prevenção situacional pode ter além do contexto espaço-temporal da intervenção propriamente dita.
A comprovação de tais efeitos secundários e saudáveis teria permitido melhorar o desenho e rendimento dos programas de prevenção, sugerindo estratégias muito eficazes[1], como a distribuição gratuita e aleatória de dispositivos de segurança de elevado custo, não acessíveis a todos; a concentração de tais mecanismos nos objetivos mais vulneráveis e visíveis; a divulgação e publicidade de tais medidas para incrementar o efeito dissuasório nos infratores potenciais etc.[2]
As Unidades de Polícia Pacificadora não estão sendo instaladas necessariamente nas áreas mais violentas da cidade. Uma série de critérios é levada em conta no momento de escolher a comunidade a ser pacificada, dentre eles, a viabilidade de se alcançar o sucesso e a visibilidade da comunidade pacificada.
A pacificação de comunidades da Zona Sul do Rio de Janeiro podem, assim, ser fundamental para que se obtenha o apoio das classes médias e altas a essa política e se possa, posteriormente, implantá-la em outros bairros.
Os teóricos da prevenção situacional defendem, ademais, que o deslocamento da criminalidade pode produzir-se, mas não é inevitável e tem, em todo caso, alcance limitado. Além disso, nem sempre o deslocamento deve ser reputado negativo, como no caso do aparecimento de formas alternativas de criminalidade menos graves e sérias, ou de uma nova distribuição demográfica ou geográfica do delito socialmente menos nociva.
O fato de o número de homicídios ter caído e o de roubos de veículo aumentado em decorrência de uma nova política criminal, por exemplo, deve ser comemorado. Os defensores da prevenção situacional alegam que já se conhecem os mecanismos internos e condições previsíveis de deslocamento, de maneira que podem ser desenhadas estratégias situacionais adequadas para neutralizá-lo, e formulam critérios para explicar em que casos e sob quais condições é mais provável que se produza o deslocamento (teoria da adaptabilidade do delinqüente, da familiaridade do espaço físico, das propriedades que estruturam seletivamente a decisão criminal etc.).[3]
As repercussões das invasões no RJ em outros Estados
Com medo de ser o destino de traficantes do Rio de Janeiro em fuga, durante a ocupação do Complexo da Penha e do Alemão, em novembro de 2010, a maioria dos Estados do Nordeste tomou medidas para conter a possível entrada de criminosos na região. Estradas, portos, aeroportos e presídios foram monitorados 24 horas por dia, a fim de detectar qualquer possibilidade de ingresso de fugitivos.
Um dia após a ocupação do Complexo do Alemão, a Polícia Rodoviária Federal da Bahia, Estado da região mais próximo do confronto, passou a fiscalizar a entrada de todos os veículos nas divisas com os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo. Em Alagoas, a Polícia Civil reforçou o monitoramento dos presídios, onde estariam detidos supostos integrantes de facções criminosas do Rio de Janeiro, e a Polícia Rodoviária Federal utilizou todo o efetivo em operações nas rodovias, em especial nas divisas, para tentar fazer com que os fugitivos não chegassem ao Estado.
Em Pernambuco, a Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar se uniram, ampliaram o efetivo e também monitoraram todos os veículos que entravam no Estado, inclusive com revista aos passageiros.
Em nota, a Secretaria de Defesa Social do Estado informou que “intensificou as ações de inteligência e a obtenção de informações com os órgãos de segurança do Rio de Janeiro, para identificar a eventual possibilidade de migração de criminosos para nosso Estado”.
As autoridades traçaram estratégias para intensificar o controle dos acessos não só por terra, mas também nos aeroportos e portos.
Na Paraíba, o governo do Estado determinou que os setores de inteligência das polícias Militar e Civil acompanhassem atentamente a guerra ao tráfico do Rio. A Polícia Rodoviária Federal e a Polícia Militar também aumentaram o efetivo nas rodovias nas divisas do Estado, com a montagem de barreiras. As ações aconteceram em integração com os vizinhos Pernambuco e Rio Grande do Norte. A Secretaria de Segurança Pública do Ceará apenas informou que a coordenadoria de Inteligência analisou as informações sobre as atividades de traficantes no Rio.[4]
A segurança nas fronteiras também foi reforçada no Paraná e em Mato Grosso. Em Mato Grosso, a Polícia Militar disse ter intensificado o trabalho do Gefron (Grupo Especial de Segurança de Fronteira) desde o agravamento da crise no Rio.
Segundo o comandante da unidade, o tenente-coronel Antônio Mario Ibanez, havia a preocupação de que os criminosos pudessem diversificar suas ações e áreas de atuações. Como a droga entra pela fronteira, a segurança seria reforçada.
Já o delegado Ricardo Cubas Cesar, chefe da Delegacia da Polícia Federal em Guaíra, situada no extremo noroeste do Paraná, disse que o serviço de inteligência estava monitorando "possíveis reações" oriundas de uma base do Comando Vermelho na cidade vizinha paraguaia de Salto del Guayrá. Tal base existe desde 2006 e, de lá, traficantes controlam o comércio de maconha nos departamentos (equivalente a Estados) paraguaios de Canindeyu, Alto Paraná e Amambay.
O Comando Militar da Amazônia informou que antes da ação contra o tráfico no Rio já estava em curso uma operação de patrulhamento na fronteira do Amazonas com a Colômbia, maior produtor de cocaína do mundo. Segundo o comando, não houve mudança na estratégia de segurança das fronteiras após o início da operação no Complexo do Alemão.
Já em Mato Grosso do Sul, equipes da Polícia Federal, Força Nacional e da Polícia Rodoviária Federal aumentaram a atenção quanto ao possível uso das fronteiras com o Paraguai e a Bolívia como rota de fuga por traficantes vindos do Rio de Janeiro. Segundo o inspetor Eduardo Samúdio, chefe do setor de comunicação social da Polícia Rodoviária Federal no Estado, o objetivo era também impedir a entrada de drogas e armas. A fiscalização, segundo ele, já havia sido intensificada antes dos ataques registrados no Rio.
A Assessoria de Imprensa da Polícia Federal em Brasília negou que houvesse uma nova operação em andamento nas fronteiras. De acordo com a corporação, a fiscalização fazia parte das ações previstas na operação Sentinela, lançada em março e de caráter permanente.[5]
Repercussão internacional
Por fim, o coronel Luis Lanchipa, subcomandante da Polícia de Santa Cruz, no leste da Bolívia, afirmou que a Polícia Nacional da Bolívia temia que traficantes do fugissem para o território boliviano, devido à operação realizada pelas forças de segurança brasileiras no Complexo do Alemão, e que estavam fazendo constantes operações de segurança.
O então ministro brasileiro da Justiça, Luiz Paulo Barreto, e o então ministro boliviano do Interior, Sacha Llorenti, acertaram, em Brasília, uma maior cooperação na fronteira para combater o tráfico de drogas. Os dois ministros analisaram a promoção de um plano regional de combate às drogas que incluísse também o Peru, país de vasta fronteira com os dois países.[6]
Conclusão
Se é bastante difícil demonstrar empiricamente o efeito de deslocamento da criminalidade de um bairro para outro, na mesma cidade, com características sócio-espaciais semelhantes, tendo em vista que inúmeros fatores podem ser responsáveis pela diminuição das taxas de criminalidade em um e o respectivo aumento em outro, torna-se praticamente impossível demonstrar empiricamente o efeito de deslocamento da criminalidade de um Estado para outro, ainda mais de um país para outro.
Trata-se, porém, de uma hipótese que deve ser analisada diante de indícios consistentes, tais como a fuga de traficantes para determinados locais e o súbito aumento da violência. Para a ciência do crime (Criminologia) importa observar atentamente o fenômeno da migração do crime, com o objetivo de poder traçar políticas de prevenção.
[1] Cf. GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, L.F. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 7 ed. reform., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
[2] Ibid. p. 369.
[3] Cf. GARCÍA-PABLOS DE MOLINA, Antonio e GOMES, L.F. Criminologia: introdução a seus fundamentos teóricos: introdução às bases criminológicas da Lei 9.099/95, lei dos juizados especiais criminais. 7 ed. reform., atual. e ampl. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2010.
[4] http://noticias.uol.com.br/cotidiano/2010/12/01/estados-do-nordeste-montam-acoes-para-evitar-ingresso-de-traficantes-em-fuga-do-rio.jhtm
[5] http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/838724-apos-acoes-no-rio-parana-e-mato-grosso-reforcam-seguranca-na-fronteira.shtml
[6] http://noticias.terra.com.br/brasil/noticias/0,,OI4818305-EI17320,00-Policia+da+Bolivia+teme+fuga+de+traficantes+do+Complexo+do+Alemao.html
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