Andrea Domínguez 29/11/2010
Imagine uma delegacia juvenil em que, no lugar de isolamento e intimidação, existam diálogo e respeito. Um espaço em que não haja celas, mas sim salas de reflexão, e no qual o policial que recebe o menor em conflito com a lei esteja capacitado para oferecer um tratamento digno, com assistência de psicólogos e assistentes sociais. Além disso, imagine uma delegacia de polícia que apresenta uma taxa de reincidência de menores em conflito com a lei de apenas 3%. Utopia? Não. Realidade.
Este lugar existe e está situado em um dos bairros mais vulneráveis à delinquência juvenil de Lima, no Peru. Nos cinco anos de funcionamento do Projeto de Justiça Juvenil Restaurativa do distrito de El Agustino, a população do bairro tem sido testemunha de uma transformação importante na vida de muitos de seus jovens - e na relação deles com a polícia.
Com 185 mil habitantes, dos quais 60% vivem em situação de extrema pobreza, e com altos índices de criminalidade, o distrito de El Agustino tinha que atuar de forma rápida para conter este problema. O cenário começou a mudar em 2005, quando a Fundação Terre des Hommes, a Associação Encuentos, a Casa da Juventude de Lima e a Delegacia de Polícia de El Agustino iniciaram a implementação do projeto, cujo alicerce fundamental é uma relação com os jovens baseada no respeito à sua dignidade.
Entre 2005 e 2009, a equipe do Projeto Justiça Juvenil Restaurativa atendeu a mais de mil adolescentes em conflito com a lei com idades entre 14 e 17 anos. Deles, 576 foram atendidos na sede policial do distrito de El Agustino e a maioria das infrações cometidas eram relacionadas a crimes contra o patrimônio (roubos e furtos).
Este projeto - que é modelo não só no Peru, mas em toda a América Latina - conseguiu, em cinco anos, o que a justiça comum não tinha conseguido em décadas de abordagem repressiva: baixar as taxas de reincidência criminal, de 55% para 3%.
A polícia tem um papel crucial neste mudança. O delegado de El Agustino, comandante Daniel Llaury Linares (foto) tem feito parte deste processo desde o início e é um dos defensores do modelo de Justiça Juvenil Restaurativa (JJR).
Sua convicção se baseia nos resultados alcançados em sua comunidade, mas se sustenta também em sua vivência pessoal. "Quando eu tinha 12 anos, fui preso por estar mexendo em uma bicicleta. Eles acharam que eu a tinha roubado e me colocaram numa cela com adultos em uma delegacia desde as nove da manhã até as dez da noite em pleno regime militar, em 1974. Eu vinha de uma família disfuncional, não tive pai e vivia só com a minha mãe. Naquele momento, assumi o compromisso de ser policial, mas de ser um poilicial que realmente cumpriria as leis e não cometeria abusos como a polícia que eu conheci", relembra Llaury.
Módulo modelo
O eixo central do trabalho realizado com menores em conflito com a lei - e o maior orgulho do projeto, para a delegacia de polícia de El Agustino - é o Módulo Especializado em Atenção de Adolescentes em Delegacias, o primeiro deste tipo em toda a América Latina e construído em maio de 2008. "Estamos aplicando o sistema de JJR desde 2005, mas nos demos conta muito rapidamente que faltava um lugar e pessoal especializado para receber exclusivamente jovens. Este módulo preenche esse vazio", afirma Llaury.
O local tem três ambientes: uma sala de repouso, onde o adolescente descansa, privado de sua liberdade, e que conta com serviços básicos. Há a sala de entrevistas, onde trabalham os operadores de justiça e que tem um vidro de reconhecimento, para que vítimas e testemunhas possam reconhecer o adolescente, sem ferir a dignidade de ambas as partes. Ainda há um pátio de descanso (foto), onde os adolescentes podem encontrar-se com seus familiares.
O módulo e o tratamento oferecido pelos policiais especializados tem feito com que a taxa de corrupção e agressão física por parte da polícia em relação aos adolescentes permaneça em 0%, de acordo com Llaury.
Maus precedentes
A necessidade de introduzir mudanças no sistema juvenil se baseou em uma pesquisa realizada em 2002 pela Fundação Terre des Hommes, que identificou alguns dos problemas do sistema de justiça juvenil no Peru, referentes à intervenção policial e ao tema da especialização e capacitação.
O ponto de partida das deficiências era a inexistência de uma especialidade em justiça juvenil, tanto no âmbito policial quanto no campo do Ministério Público e do Judiciário. Mais especificamente, a pesquisa concluiu que se apresentavam problemas como retenção arbitrária de adolescentes, uso excessivo da internação preventiva e falta de capacitação contínua para os operadores da segurança pública e da justiça em geral.
Um estudo realizado em 2004 confirmou que a polícia de El Agustino realizava um grande número de apreensões ilegais de jovens e que em raros casos informava aos menores sobre seus direitos. De acordo com a pesquisa, só 5,26% dos jovens disseram ter recebido algum tipo de informação a respeito.
Como se tudo isso fosse pouco, em muitos dos casos, não se comunicava estas apreensões aos pais nem aos responsáveis pelos adolescentes.
Toda esta situação tornou evidente a necessidade de preparar um ambiente na delegacia de El Agustino que oferecesse a privacidade e a reserva necessárias às investigações e que respeitasse os direitos dos jovens, entre eles o de que eles fossem colocados em um ambiente separado dos adultos em conflito com a lei, para que fosse resguardado o direito à reserva do caso e/ou da identidade dos jovens investigados.
Com a habilitação do Módulo Especializado de Atenção a Adolescentes em Delegacias, permitiu-se estabelecer um circuito e procedimentos integrados e centralizados de atenção aos adolescentes detidos em qualquer uma das cinco delegacias da região.
Boas perspectivas
De acordo com o delegado Llaury, graças ao trabalho dos últimos cinco anos em El Agustino, conseguiu-se gerar um modelo de intervenção, no que diz respeito aos adolescentes em conflito com a lei penal e de atenção à vítima. A centralização da intervenção que este modelo propõe permitiu estabelecer uma maior e melhor coordenação entre as cinco delegacias do distrito.
Na maioria dos casos atendidos, conseguiu-se estabelecer e garantir a presença dos pais ou responsáveis pelos jovens e, ainda, os informes policiais passaram a ser entregues aos fiscais em menos tempo (entre 15 e 20 dias).
Do ponto de visto destes adolescentes, o projeto tornou possível que 100% dos atendidos recebessem um tratamento digno e humano. O ambiente do módulo diminuiu os riscos de fuga, de autoagressão e, inclusive, de agressões aos agentes policiais; além disso, facilitou, de forma segura, a identificação do adolescente pela vítima e garantiu a reserva do caso, o controle adequado e o sigilo.
Existe uma melhor percepção da figura da polícia e da autoridade em geral por parte do adolescente e de sua família. "100% dos jovens têm a oportunidade de conversar de maneira aberta sobre o ocorrido. Observou-se neles uma mudança importante em seu comportamento em relação à delegacia, eles agora têm um espaço adequado para refletir", explica o comandante.
Todo o processo tem contribuído para que estes adolescentes sejam menos estigmatizados dentro da instituição e pela comunidade, já que tanto a vítima quanto a comunidade melhoraram sua percepção e participação, sentindo-se responsáveis por abrir espaços de encontro (no caso da vítima) e espaços sociais (no caso da comunidade) para os adolescentes em conflito com a lei.
Finalmente, do ponto de vista das vítimas, uma das grandes vitórias é que conseguiu-se levar adiante muito mais processos restaurativos para elas, garantindo-lhes um ambiente seguro e diminuindo riscos de agressão.
"Existe uma melhor percepção da figura dos policiais e da autoridade também pela vítima. Ela participa ativamente, contribuindo para a não estigmatização do adolescente e com o compromisso da comunidade com a reinserção deste adolescente e da vítima", pontua o delegado.
A atenção especializada da polícia, que dispensa tratamento diferenciado aos adolescentes, por sua condição de desenvolvimento, faz com que ocorra uma mudança radical da conduta e da percepção destes jovens ao agente policial que os atende. O estresse e a agressão diminuem e ambas as partes podem comunicar-se e relacionar-se com respeito.
Por tudo isto, para Llaury, uma polícia que trabalhe de maneira preventiva e ativa na comunidade e que veja o jovem como um sujeito de direitos e um indivíduo com grande potencial para a comunidade, não é uma utopia, mas sim a realidade de seu dia-a-dia. "Garantir a segurança e o respeito à dignidade durante a detenção tem permitido que o adolescente tenha uma atitude diferente, sem ressentimentos e com respeito para com a polícia, além de ter permitido que os jovens tenham um espaço de reflexão, que acaba por contribuir para a promoção de sua responsabilidade e autoconhecimento", concluiu, orgulhoso, o delegado de El Agustino.
FONTE: COMUNIDADE SEGURA.ORG - http://www.comunidadesegura.org/pt-br/MATERIA-policia-especializada-em-atencao-a-jovens.
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