Quando a SEGURANÇA é apenas uma SENSAÇÃO baseada na ocupação policial dos guetos. Com 20 vezes mais PMs por m² no morro do que nas ruas, política de UPPs deixa cidade desguarnecida - Pedro Porfírio, 08/09/2011
“Nós temos o hábito de ouvir música o tempo todo. Além dos bailes, sempre tinha um forró, um pagode tocando nas escadas e nas ruas. Hoje, os policiais estão acabando com a música a partir de meia-noite. Chegam criando confusão e as pessoas, que na hora já beberam um pouco, resolvem brigar”. Todos os policiais que estão aqui são muito jovens e inexperientes. O trabalho deles deveria ser vigiar essas reuniões e impedir que o tráfico se estabeleça, mas como eles não conseguem fazer isso, saem restringindo tudo. Para mim não é um grande problema, pois eu até tenho dinheiro para sair lá embaixo, ir às boates e bares, mas tem gente que não tem, que a única diversão é essa, na favela.” Monique Silva e Silva, 20 anos nascida em criada no Morro Dona Marta, em Botaf ogo, aluna bolsista de Direito da PUC-RJ.
A manhã beijada pelo sol brilhante tinha tudo para banhar de um prazeroso frescor a rotina dos moradores de Ipanema, bairro imortalizado por Vinícius de Morais e Tom Jobim, onde os imóveis têm um dos mais caros metros quadrados do país.
Era sábado e porque era um sábado de temperatura amena o trânsito fluía tranquilo na Avenida Prudente de Morais em direção ao Leblon. Às 11h20m, o arquiteto Rômulo Castro Tavares manobrou seu Tuckson para entrar no prédio 680, próximo à Maria Quitéria e a três quadras de um dos endereços mais sofisticados do Rio de Janeiro - o Country Club.
A espera do portão abrir, o rapaz bonito e atlético foi abordado por um elemento armado. Aturdido pelo assalto inesperado, àquela hora do dia, abriu a porta para sair e foi alvejado na barriga, caindo junto a uma árvore. O criminoso saiu correndo para a moto que lhe dava cobertura, sem levar nada, nem o carro, nem o rolex, nem o celular da vítima, que completara 33 anos na sexta-feira.
Aquela era um das 120 ocorrências policiais no bairro em agosto – 23 a mais do que no mesmo mês em 2010 e muito mais do que no ano anterior. Isso sem se falar numa quantidade enorme de delitos menores que as vítimas deixam de registrar para evitar outros aborrecimentos.
Perto dali, os mais de 5 mil moradores das favelas do Cantagalo e Pavão-Pavãozinho estão virtualmente acorrentados desde que foram ocupadas por uma Unidade de Polícia Pacificadora – UPP - em dezembro de 2009, conforme a nova fórmula de proteção aos cidadãos na cidade do Rio de Janeiro, que trabalha a partir da “recuperação de territórios em poder do tráfico”.
No sábado da tragédia, não se viu policiamento naquela avenida glamourizada, paralela à Vieira Souto. Mas nos dois morros próximos, os moradores, em sua quase totalidade trabalhadores, vivem sob pressão ostensiva num ambiente de “pacificação” esdrúxulo, com um volume incontável de vigias, que os imobilizam como suspeitos, mas não conseguem nada além de remeter a venda de drogas para o “sapatinho”, enquanto fazem falta na rua em que o arquiteto foi assassinado.
Policiais trocam o asfalto pela ocupação das favelas
Segundo números oficiais da Secretaria de Segurança Pública, há um PM para cada 1.778 m² nos morros “pacificados” da Zona Sul. Enquanto isso, na área urbana do 23º Batalhão, que pega Leblon e Ipanema, a média é de um PM para cada 23.118 m², e a do 19º - Copacabana – é de um PM para cada 12.326 m².
O governo do Estado vendeu a uma sociedade desavisada o xarope de uma sensação de segurança inspirada na ocupação policial das comunidades pobres. A regra é clara na cartilha do governo Cabral: “há violência urbana porque há favelas controladas pelo tráfico ou as favelas existem para dar retaguarda aos criminosos”. Militarizadas, elas não poderão acobertar tais elementos.
Vender esta concepção estapafúrdia não foi difícil, antes pelo contrário. Até alguns badalados sociólogos embarcaram no teorema. Há décadas o cidadão do asfalto vem sendo bombardeado com a imagem de que as favelas são irremediáveis santuários do crime, principalmente a partir do governo Brizola, que ousou impor o reconhecimento da cidadania dos seus moradores - norma suficiente para que se espalhasse que a polícia fora proibida de entrar nesses guetos.
Muitos desses cidadãos se sentiram aliviados quando a PM subiu o morro para lá aquartelar-se e a mídia se encarregou de explorar essa expectativa com tal eficiência que os imóveis próximos se revalorizaram: afinal, minoraram os riscos decorrentes dos confrontos à bala entre policiais e os traficantes bem armados.
A ninguém ocorreu imaginar que o desmonte das fortalezas criminosas é muito mais provável com ações de inteligência, até porque nas áreas ainda poupadas qualquer menino buchudo sabe onde e como agem os traficantes. A ocupação em si, pelo contrário, desenvolve defesas entre os criminosos e enseja relações de promiscuidade com uma polícia vulnerável ao propinoduto do tráfico.
Envolvimento de policiais em práticas de extorsão tem sido noticiado de quando em vez: nessa terça-feira, dia 6, um sargento e dois soldados, lotados na UPP dos morros da Coroa, Fallet e Fogueteiro, na Zona Norte, foram presos dentro de um carro, perto da comunidade, com quase R$ 13 mil, cuja origem não souberam explicar.
UPP que se limita a pôr bandidos no “sapatinho”
Ninguém percebeu que estava diante de uma reles encenação, como se vê agora, com a erupção de confrontos regados a balas traçantes no Complexo do Alemão, enquanto o secretário de Segurança, José Maria Beltrame, afirma que “os traficantes voltaram” e estariam por trás das últimas manifestações. Esse tipo de bala só pode ser disparada por fuzis 7.62, de uso exclusivo das Forças Armadas: encontrar essas armas com traficantes não é novidade.
A UPP, na prática, é implantada mediante “acordo” não celebrado com a bandidagem local, que muda seu modus operandi, trocando o proscênio pelos bastidores e escondendo seu arsenal a sete palmos. Com isso, delegados como Monique Vidal, de Copacabana, admitem que ficou mais difícil flagrar o negócio, que se modernizou com a entrega em domicílio. Ontem mesmo, o próprio Exército divulgou o vídeo de uma boca de fumo, na Rua 9 da Vila Cruzeiro, que ocupa desde dezembro passado.
Mas também ninguém queria perceber nada diferente de suas idealizações. Nas grandes cidades, qualquer um que não tenha grana para um carro blindado ou para seguranças pessoais vive morrendo de medo de ser a próxima vítima de uma morte violenta, como a do arquiteto, em Ipanema. Daí acreditar em qualquer coisa que lhe sirvam como calmante.
Os cidadãos tendem a apoiar medidas com o sabor de punição seletiva. E isso não é só entre os da classe média. No morro mesmo ninguém suporta o desfile de bandidos armados exibindo o que há de mais moderno e mais letal em fuzis e metralhadoras. Ninguém se sente bem com o comércio de drogas à porta de sua casa.
Mas, como diz uma faixa exposta numa das entradas do Complexo do Alemão, a prática das ocupações militares foi “uma troca de seis por meia dúzia”, com desconfortáveis aditivos colaterais que realçam a repressão sobre todos, a humilhação da tutela policial e a discriminação social.
Isto é, trocando em miúdos: a concentração de efetivos em algumas favelas limitou-se à “tomada de território inimigo” - não estancou a criminalidade na vizinhança e ainda produziu um elemento explosivo que o tempo vai revelando.
Quando o medo orienta as ações
Os militares agem sob o impulso de uma doutrina de guerra urbana e não estão livres do medo, obrigando-se à demonstração contínua de sua condição “superior”. Em “campo inimigo”, recorrem ao exercício frenético da “autoridade” como forma de consolidar sua presença.
No final de semana, os moradores do Complexo do Alemão, sob ocupação do Exército, experimentaram toda sorte de truculência, a partir de um primeiro incidente, quando soldados mandaram baixar o volume de uma televisão que transmitia um jogo de futebol.
Os protestos e confrontos que se seguiram até hoje, nos quais a principal arma dos moradores tem sido as filmadoras improvisadas e a internet, eram de se esperar ali, como também na Cidade de Deus e em outras comunidades sob ocupação. Mais dia, menos dia, o “ganho psicológico” cederá à realidade e os cidadãos dos guetos se exporão em manifestações, provavelmente com um entendimento mais político da verdadeira natureza da decantada “pacificação”.
Essa possibilidade já vem sendo captada pelo governo do Estado, que promove esta semana seminário no âmbito da Secretaria de Segurança para avaliar suas ações nas áreas ocupadas. Pelo que se percebe, porém, a doutrina “pacificadora” não será revista. Pensa-se, ao contrário, como dominar os focos de insatisfação.
Nas ruas o policiamento continua limitado
Enquanto isso, as ruas continuarão à mercê dos bandidos, principalmente nos bairros fora das áreas turísticas. Se em Copacabana há um PM para cada 12.326 m², em Jacarepaguá, área do 18º Batalhão, essa relação chega a um PM para cada 174.615 m²; em Bangu, do 14º, a coisa é mais assustadora: um PM tem de cobrir 205.156 m². Nesse levantamento, divulgado pela jornal EXTRA no domingo passado, não aparece comparativo sobre Campo Grande e Santa Cruz, as maiores regiões da cidade, mas, com certeza, a disparidade é muito maior. Essas áreas permanecem sintomaticamente sob a égide das milícias mais poderosas, embora alguns de seus chefes estejam presos.
O próprio governador Sérgio Cabral começa a se tocar sobre sua falácia, ao declarar que há uma expectativa exagerada sobre os efeitos de sua política: “é evidente que há, tanto na comunidade quanto nas forças de segurança, um resquício do aparato de violência e da cultura do poder paralelo do tráfico ou das milícias” – disse na formatura de 385 novos recrutas da PM, já escalados para o Morro da Mangueira.
Como ainda não caiu a ficha, não lhe ocorre a idéia de que combater o crime pela ocupação militar das comunidades pobres é um jogo de cena caro e estéril, de efeito virtual e efêmero, que não gera a ansiada proteção na urbe, cujos cidadãos já se renderam à necessidade de contratar seguranças particulares em seus condomínios e em suas quadras, enquanto se compensam psicologicamente com a criminalização da população miserável, amontoada em barracos e conjuntos proletários, alguns, como a Cidade de Deus, construída no governo Lacerda na década de 60, transformados pela semântica criminalizante em favelas, com o que isso representa de estigma e maldição.
COMENTÁRIO DO BENGOCHEA - Disse muito bem. Segurança não é só ocupar e colocar policiais. Os constituintes erraram ao colocar apenas nos ombros das forças policiais o exercício da segurança pública (art. 144) e se equivocaram no título V que dispõe sobre a "Defesa do Estado e das Instituições Democráticas" ao esquecerem a proteção do povo, como se as forças de defesa não estivessem a serviço do povo brasileiro.
Quanto à ocupação, esta estratégia é apenas inicial para a implantação do policiamento comunitária numa área antes de domínio do crime, seja do tráfico ou da milícia. Não pode passar de um mês, o tempo necessário para tirar a bandidagem do local. Em seguida, policiais voluntários, conhecedores da comunidade local, comprometidos com o local e treinados na filosofia do policiamento comunitário são colocados no policiamento ostensivo preventivo para aumentar a relação, educar, ensinar, aconselhar e conquistar a confiança dos cidadãos locais. Concomitantemente, o Estado aplica ações complementares de saúde, educação, saneamento, social, etc..
O policiamento comunitário só dá certo quando for intensa a confiança entre polícia e comunidade, mas para tanto é preciso que a justiça dê continuidade aos esforços policiais. Infelizmente, aí é que reside o maior problema. O Brasil tem uma justiça morosa, divergente, centralizada no STF, amparada por uma forte insegurança jurídica e focada apenas em salários que reduz a capacidade em juizes, funcionários, estrutura, tecnologia e aproximação. Esta postura, enfraquece a ação policial e limita a confiança do cidadão na polícia, já que os presos são soltos em seguida para continuarem a senda de terror de forma impune.
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