Com UPPs, a voz sem medo dos que não tinham vez é ouvida. Moradores de comunidades pacificadas confirmam que houve mudanças, mas dizem que ainda é possível melhorar
CARLA ROCHA, SELMA SCHMIDT E SÉRGIO RAMALHO
O GLOBO
Atualizado:8/12/13 - 9h32
Márcia Jacintho teve o filho Hanry assassinado por policiais Guito Moreto / Agência O Globo
RIO - Com um tom fatalista e indignado, Dalva Silva conta a história dos piores anos da sua vida no Borel. Estes começaram em 2003, quando o filho mais velho, Thiago, de 19 anos, foi morto por policiais.
— Naquele dia, a polícia subiu o morro para matar...
No beco onde tudo aconteceu, ela revive emoções que resistem a abandoná-la, mesmo passados dez anos, e chora ao lembrar que, ao cair, baleado cinco vezes à queima-roupa por tiros de fuzil, o seu menino quebrou os dentes da frente, desfazendo o sorriso impecável depois de anos de uso de aparelho. Dalva ainda mora na mesma casa, mas num morro, sob certo aspecto, muito diferente: no ano passado só foram registrados dois assassinatos, metade da chacina que, num único dia, levou a vida de Thiago e as de outras três pessoas.
Conhecido como chacina do Borel, o episódio mobilizou a opinião pública na época e os próprios moradores do morro, o que permitiu que o crime fosse desvendado. Dalva não conseguiu a justiça que esperava — depois de serem condenados e recorrerem, os executores de seu primogênito já podem estar soltos —, mas cumpriu uma missão que se impôs: o filho não entraria para o noticiário como traficante morto em confronto com a polícia (“O que mais me doía era ver o meu filho tratado como bandido”). A UPP do Borel foi inaugurada em 7 de junho de 2010. Desde então, Dalva nunca mais ouviu tiros. Atualmente, trabalha numa creche da Casa Branca, o que seria impossível há algum tempo, já que as facções criminosas das duas comunidades eram rivais.
— Não posso dizer que não houve melhoria. Antes, não havia hora para os tiroteios. Nunca imaginei ver crianças brincando pelas ruas do morro, indo e voltando da escola sozinhas. Mas precisamos desmilitarizar a polícia. Hoje os policiais ainda são executores. Matam nossos filhos usando farda, armas e balas que pagamos com o dinheiro dos nossos impostos.
Desde a implantação da UPP, os moradores do Borel não escutam mais relatos de mães que perderam filhos, vítimas de abusos praticados por PMs. Nos dois últimos anos, não houve na comunidade nenhum registro de auto de resistência, como eram classificadas as mortes de civis ocorridas em supostos confrontos com policiais. As execuções, geralmente mascaradas como trocas de tiros, também não são rotina para quem vive nas outras 28 comunidades pesquisadas. Nelas, no ano passado, foram registradas cinco mortes em confrontos, uma a menos do que em 2011.
Antes das UPPs, as estatísticas de assassinatos — que por muitos anos imprimiram a marca da violência em favelas e morros do Rio — cresciam a reboque de tiroteios quase diários. A pesquisadora Joana Monteiro, do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre), da Fundação Getulio Vargas, acaba de concluir um estudo sobre conflitos entre facções de traficantes no Rio de 2003 a 2012 para analisar os efeitos da política de pacificação sobre a frequência dos confrontos. O levantamento, que será apresentado a partir de amanhã em um seminário na FGV, mostra que houve tiroteio em pelo menos uma favela do Rio em 65% dos dias no período analisado. O universo considerado foram cerca de 5.600 comunicações de confronto feitas ao Disque-Denúncia.
— É como se tivéssemos uma guerra ininterrupta de seis anos e meio — observa Joana, chamando a atenção para dois aspectos da pesquisa. — De forma geral, a quantidade de conflitos não caiu após a política de pacificação. E uma das explicações pode ser que eles tenham aumentado em áreas não ocupadas ou sido realocados para novas favelas. Por outro lado, houve uma redução considerável nas áreas com UPPs. A política está indo para onde deveria ir, mas a Zona Norte ainda está esquecida. Precisamos ir para Muquiço, Urubu e Juramento, que são regiões extremamente violentas e estão esquecidas.
Como a segurança não se resume a uma equação matemática, uma UPP, para ser bem-sucedida, depende de recursos materiais, policiais bem treinados e, ao mesmo tempo, de ações de estado em serviços e projetos de alcance social. Mas também de aspectos intangíveis, como a confiança da população local, que fica abalada com acontecimentos como a recente morte do ajudante de pedreiro Amarildo de Souza, na Rocinha, da qual são acusados PMs da própria unidade da favela.
Moradora do Morro do Gambá, no Complexo do Lins, Márcia Jacintho ainda vê com incredulidade a instalação de uma UPP. Em 2002, seu filho, Hanry, de 16 anos, saiu para visitar um amigo e não voltou. Ele foi abordado por policiais quando descia o morro. Márcia é uma das muitas mães que se engajaram na cruzada por justiça em comunidades, onde homens jovens e negros sempre foram a maior parte das vítimas de homicídios. No tribunal, ela denunciou que o filho fora vítima da ira de policiais corruptos. Apesar de dizer que não se arrepende da luta, que lhe custou um infarto em 2008, Márcia costuma responder sempre da mesma forma quando lhe perguntam se os PMs foram presos: “Sou a única presa dessa tragédia. Presa ao sofrimento todo Natal, todo Ano Novo, todo aniversário dele, toda vez que vejo um rapaz de 27 anos, que seria a idade do meu filho agora”.
— Assim como foi ele, poderia ter sido qualquer outro. Os policiais só queriam vingança porque não tinham recebido o arrego do tráfico. Pegaram meu filho e o levaram para um matagal. Ele foi morto com uma bala no coração. Espero que as coisas melhorem, mas não tenho muita esperança. Nós não precisamos de tráfico, nem do policial que não respeita ninguém. Já não vemos mais bandido circulando de fuzil. Quanto tempo isso vai durar e se a polícia vai mudar, só o tempo poderá responder.
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